Primeiro dia de verão. A temperatura amena dessa manhã transparecia a ilusória timidez do sol que se ocultava por de trás das nuvens, brincando de esconde-esconde com as sombras que se projectavam em terra.
Com o brilho esplendoroso dos seus raios solares afastava, com doçura, os obstáculos para chegar aos locais mais recônditos. Apanhadas que eram então as sombras, acariciava as mais variadas formas de vida que por ele suspiravam, naquele dia que se antevia quente.
No seu gabinete de trabalho, estrategicamente situado no 7º andar do edifício de escritórios, onde funcionavam os serviços administrativos da empresa, Carlos baixara as persianas das janelas viradas ao nascente. Preparava-se para folhear o jornal diário como habitualmente. Lia os títulos principais, e detinha-se apenas nas páginas de economia, às notícias desportivas não dava grande importância.
O bater suave na porta interrompeu-lhe a leitura. Quando ergueu a cabeça já o seu colega lhe estendia a mão.
- Bom dia, Carlos! Quais as notícias hoje? - era o Dr. Filipe, director financeiro, cujo gabinete ficava contíguo ao seu.
- Olá, bom dia – disse respondendo ao cumprimento - Nada de importante a assinalar. Estava mesmo a terminar de ler os títulos. Se desejares podes levá-lo. Eu termino a leitura mais tarde - Filipe não fez cerimónia e, após algumas trocas de impressão sobre o estado do tempo, dirigiu-se novamente ao seu gabinete.
Os serviços administrativos da empresa estavam distribuídos por um extenso espaço sem divisórias, emoldurado pelos gabinetes dos administradores e directores. Do seu posto, Carlos conseguia ver, através das divisórias envidraçadas, tudo o que se passava à sua volta: quer nos gabinetes próximos ao seu, quer no "open space".
Gostava de ser o primeiro a chegar à empresa para fazer, tranquilamente, a leitura do Diário da Manhã, analisar a agenda, verificar relatórios, possíveis anomalias no sistema informático e abrir o correio electrónico. Tarefas que gostava de concluir antes da chegada do restante pessoal.
Ligou o computador, deu início às actividades mas, repentinamente, o seu semblante alterou-se. O olhar fixo no ecrã evidenciava surpresa. Na caixa de correio uma mensagem chamou a sua atenção: o assunto em branco, o remetente não lhe era familiar. Com a curiosidade a aumentar de intensidade resolveu a abrir a mensagem e leu:
"Caro Senhor, desculpe a minha ousadia, mas ao encontrar o seu cartão recordei a triste figura que fiz naquela célebre viagem. Decidi enviar esta mensagem para lhe agradecer novamente a amabilidade e a atenção que me dispensou durante o tempo que viajei na sua companhia."
Assinava "Xanna".
O nome não fazia parte da sua lista de contactos profissionais, nem do seu grupo de amigos mais chegados. Mas não tardou muito em reconhecer a autora daquela mensagem, nem a identificar a pessoa que se ocultava por de trás daquele nome.
O pensamento retrocedeu no tempo, velozmente, como que por magia. As imagens, passadas, projectaram-se diante dos olhos do subconsciente, como um filme.
Sentado no avião, Carlos folheava descontraidamente uma revista, aguardando a hora da partida. O pensamento vagueava alternadamente entre os assuntos profissionais que o absorveram durante os últimos três dias, de intenso trabalho, e o reencontro com a família, que o aguardava ansiosamente. As extensas plantações de tulipas e o aroma das flores do jardim do hotel misturavam-se também no formigueiro da sua memória.
-Dá-me licença se faz favor? - a voz melodiosa de uma jovem senhora, que procurava ocupar o lugar vago, fê-lo despertar.
Sem hesitar, levantou-se com simpatia, deixou-a passar, e lamentou mentalmente o facto daquele espaço não continuar disponível para melhor se acomodar na viajem.
Novamente sentado, e deliciado pelo perfume que a senhora deixou à sua passagem, fechou os olhos, e regressou ao mundo da fantasia de onde fora forçado a sair. Imaginou a cara de satisfação dos pequenotes no momento de receberem os presentes que ele lhes comprara pouco antes do embarque. Um hábito institucionalizado, a que os acostumara, e que, de certa forma, compensava as ausências paternas. Seria para eles uma enorme decepção se algum dia chegasse de mãos vazias.
A partida estava iminente. Duas das hospedeiras deram início aos formalismos da viagem. A informação, acompanhada por gestos autómatos, explicava aos passageiros as normas de segurança e como deveriam proceder em caso de emergência. O circuito interno de vídeo, exibia ao mesmo tempo, todas as explicações.
Já o avião deslizava suavemente para a pista de descolagem, quando Carlos se apercebeu do nervosismo e inquietação da sua companheira. Com o aumento do ruído dos reactores a velocidade aumentou bruscamente. A sensação de leveza, e o vazio no estômago, eram sinais inequívocos, o avião já se encontra no ar.
Ele sentiu uma força invisível colá-lo ao banco, e uma pressão no braço esquerdo que o obrigou a voltar a cabeça.
Ao aperceber-se, a jovem senhora, retirou a mão. Comprometida e intimidada balbuciou com a voz trémula:
- Desculpe. É uma reacção instintiva. Não é a primeira vez que me acontece.
- Não tem importância. Esteja à vontade. Posso ajudar nalguma coisa? – questionou Carlos para a acalmar.
No momento da descolagem, e assim que sentia o chão fugir-lhe dos pés, agarrava-se a tudo o que encontrava à mão.
- Muito agradecida… isto já passa. Desculpe-me mais uma vez - a sua voz trémula tinha um timbre agradável, muito feminino.
Carlos, que até àquele momento se tinha mantido indiferente àquela presença mostrou-se inesperadamente interessado pela identidade e personalidade da companheira.
Nos dedos finos, compridos, das suas mãos delicadas e esmeradas, não se viam anéis nem aliança. As unhas envernizadas num tom cor-de-rosa claro. O longo cabelo preto, que usava solto, dava-lhe um ar juvenil e descontraído. Os óculos escuros que lhe emolduravam a face, ainda pálida, impediam-no de ver a cor dos olhos. Vestia calças de ganga azul e uma blusa em tons de preto e bege. Uma figura harmoniosa que rondaria, na opinião de Carlos, os 35 anos.
Pouco conversador, mas bastante observador, não tinha por hábito falar com desconhecidos durante as frequentes viagens que fazia, mas na sua mente formava-se uma dança frenética de pontos de interrogação a clamarem por resposta.
Ansiava por mais pormenores sobre o ser misterioso que o destino colocara ao seu lado porém, e por receio de se tornar inconveniente, manteve-se silencioso.
A oportunidade ideal surgiu aquando da distribuição da refeição. Carlos, que detesta a comida que servem a bordo, e pouco ou nada come em tais circunstâncias, aproveitou para reatar o diálogo:
- Como está o almoço? Saboroso?
- Mais ou menos. Dá para aconchegar o estômago. Como não sei se terei tempo para almoçar ajudar-me-á a suportar a fome até que tome uma refeição mais agradável.
- Eu não aprecio o tipo de comida que servem a bordo, pouco ou nada como em viagens - respondeu Carlos ao barrar um pedaço de pão com manteiga que rapidamente levou à boca.
O sotaque de Alexandra denunciou-lhe a origem açoreana, pormenor que ela própria confirmou quando a isso ele fez referência.
- Nasci nos Açores, lá cresci e ainda moro.
- Então deduzo que esteja de regresso a casa. Vai ter que fazer escala em Lisboa e apanhar novo voo para...
- Ponta Delgada - apressou-se a responder.
- Desculpe, ainda não me apresentei, Carlos Figueiredo, muito prazer.
- Alexandra Soares, muito gosto.
A timidez inicial dele ia diminuindo à medida que se apercebia que Alexandra era mais extrovertida.
Desinibida explicou-lhe que tinha aproveitado as férias da Páscoa para visitar uns amigos na Holanda, e assim fugir à monotonia diária, que era a sua vida insular. Os cinco dias que passou em Amesterdão foram agradáveis mas insuficientes para conhecer tudo quanto desejava. O semblante alterava-se durante o relato, deixando transparecer um misto de tristeza e saudade, para logo de seguida voltar ao normal. Um detalhe que não passou despercebido a Carlos, mas que disfarçou de forma genial para não interferir com os sentimentos íntimos da jovem, nem lhe interromper a descrição da viagem.
O voo decorreu com normalidade, a sequência da conversa acabou por criar um ambiente de familiaridade entre os dois, dando a ideia de um conhecimento de longa data. Trocaram opiniões sobre a Holanda, os locais visitados, e falaram sobre os Açores, em especial de S. Miguel.
Carlos acabou por confidenciar-lhe também alguns pormenores da sua viajem, e os motivos que o levaram à Holanda.
Até que o aviso sonoro da aproximação ao aeroporto de Lisboa lhes provocou surpresa. O tempo passara tão rápido devido ao interesse dos assuntos abordados.
- Também tem receio das aterragens, ou é apenas das descolagens? - perguntou Carlos ao recordar o aflição de horas antes.
- São dois momentos críticos nas viagens de avião, provocam-me uma elevada ansiedade – respondeu Alexandra.
- Não se preocupe, mantenha a calma, pode dar-me a mão, se achar que isso a irá fazer sentir-se mais segura, claro – sugeriu-lhe solicitamente
- Obrigada pela simpatia. Mas vou respirar fundo e arranjar coragem para não fazer figuras tristes. A sua presença está a dar-me confiança... sinto-me muito mais segura.
O avião pousou suavemente, Alexandra dirigiu um olhar de vitória ao companheiro de viagem, que lhe sorria de satisfação. No seu interior sentia-se reconhecida por ter viajado em tão boa companhia.
No momento da despedida, Carlos teve tempo para lhe entregar um cartão de visita.
- Foi um prazer tê-la conhecido. A sua companhia foi muito agradável. Espero voltar a encontrá-la numa próxima viagem.
- Eu é que estou agradecida pela simpatia da sua companhia, pela ajuda e apoio que me prestou durante a viagem.
Ao dirigir-se para a saída, Carlos voltou-se, o seu olhar encontrou Alexandra que nesse preciso momento se voltava também para um último adeus.
Carlos fixou novamente o ecrã, releu a mensagem, visualizava nitidamente a imagem dela a dizer-lhe, de viva voz, o que lhe havia escrito em mensagem. A sensação, que aquela recordação lhe gerou, impulsionou-o a responder de imediato ao e-mail, mas o ruído e a agitação que se verificava no “open space” chamou-o à realidade. Era imperativo o regresso à rotina.
José Alves